GEORGE SARMENTO
Professor
Associado da UFAL/FDA
Doutor
em Direito Público
Pesquisador
do Laboratório de Direitos Humanos/UFAL
Promotor
de Justiça – Fazenda Pública Estadual
Sumário: 1. Introdução: o despertar do
sujeito de direitos. 2. Supraestatalização da Educação em Direitos Humanos. 3.
Educação em Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro. 4. Os Desafios
da Educação em Direitos Humanos. Para concluir: apreensão e interpretação dos
direitos humanos.
1.
INTRODUÇÃO: O DESPERTAR DO SUJEITO DE DIREITOS
2012
termina com a divulgação de pesquisa encomendada pela consultoria britânica Economist Intelligence Unit (EIU), que
coloca o Brasil no penúltimo lugar do ranking global de qualidade da educação.
O ano começou com o Relatório da Anistia Internacional que apontou os
preocupantes índices de execuções e torturas praticadas por policiais
brasileiros, cujos crimes permanecem impunes. Entre 176 países investigados, o
Brasil ocupa a 69ª posição no ranking elaborado pela Transparência
Internacional no índice de Percepção da Corrupção em 2012. A violência também é preocupante. A última
pesquisa da Fundação Perseu Abramo/SESC demonstrou que, a cada 5 minutos, 2
mulheres são vítimas de agressões físicas, na maioria das vezes em sua própria
residência. Segundo dados divulgados pelo Grupo Gay da Bahia, o Brasil é o país
mais homofóbico do Planeta, dado o expressivo aumento de homicídios e agressões
decorrentes da condição social das vítimas.
Os
dados estatísticos são contundentes: as leis brasileiras não têm conseguido
diminuir os índices de corrupção e violência. Duas constatações explicam esse
fenômeno. De um lado, o Brasil tem se mostrado incapaz de implantar, de forma
eficiente, os direitos sociais previstos na Constituição Federal. De outro, a
defesa social tem fracassado, tanto na repressão como na prevenção à
criminalidade. O que é mais paradoxal é que tudo isso ocorre no país que foi
alçado a 6ª maior economia do mundo no ranking do banco alemão WestLB. Em
outras palavras, somos uma nação rica, mas ostentamos índices de países com
baixo desenvolvimento social.
A
cidadania brasileira passa por uma crise sem precedentes, que decorre da
decepcionante efetividade dos direitos fundamentais. A principal consequência
disso é a descrença nas instituições democráticas, o retorno ao individualismo
egoístico do “cada um por si”, o sentimento de impotência diante do abuso de
poder e, sobretudo, a falta de ativismo político para reivindicar o cumprimento
dos deveres estatais.
A
sociedade civil deposita grandes expectativas no Judiciário, que tem
desenvolvido um discurso concretizador da Constituição e conseguido expressivos
avanços na chamada tutela coletiva. Porém, quase nada foi feito para despertar
o “sujeito de direito” que existe em cada um de nós, ainda adormecido pela
acomodação, conformismo ou ignorância. E isso só é possível com o fomento à
Educação em Direitos Humanos.
Como
pesquisador do Laboratório de Direitos Humanos/UFAL, coordenei uma enquete
sobre o conteúdo programático das disciplinas ofertadas no ensino fundamental e
médio. Queria saber se os alunos tinham tido algum tipo de atividade pedagógica
que estimulasse a leitura, a compreensão ou o conhecimento dos direitos e
garantias previstos em nossa Constituição Federal. Quase a totalidade dos
entrevistados, estudantes universitários, responderam que não. A temática só
começa a ser abordada no ensino superior, mesmo assim na área das ciências
sociais. O ensino brasileiro está mais voltado para o mercado de trabalho do que
para a formação de cidadãos plenos e comprometidos com a coletividade. Dessa
forma, os alunos ingressam nas universidades completamente despreparados para
lutar por suas prerrogativas individuais e coletivas. E não para por aí. O
déficit educacional também está presente nas corporações militares, na polícia
judiciária, nos meios educacionais e em alguns setores do Ministério Público e do
Judiciário.
Por
essa razão, o despertar do sujeito de
direito passa pela educação crítica, dialética e comprometida com a
valorização da pessoa humana em todas as suas dimensões. Essa é a missão da
Educação em Direitos Humanos: formar cidadãos ativos e conscientes de seu papel
na sociedade.
A
Educação em Direitos Humanos é “a prática educativa que se baseia no
reconhecimento, defesa, respeito e promoção dos direitos humanos e que tem como
objeto desenvolver nos indivíduos e nos povos as suas máximas capacidades como
sujeitos de direitos, assegurando-lhes as ferramentas necessárias para fazê-los
efetivos”.
Trata-se de uma pedagogia que se desenvolve em dois eixos: 1º) a difusão dos
direitos fundamentais (liberdades públicas, direitos políticos, direitos
econômicos, sociais e culturais etc.; (2º) a difusão das garantias
constitucionais que possibilitam a efetividade de tais direitos na realidade
social (ações constitucionais, procedimentos administrativos e processuais
etc.).
A
ONU define EDH como o conjunto de atividades de aprendizagem, ensino, formação
e informação, destinadas a criar uma cultura universal de direitos humanos com
a finalidade de (a) fortalecer o respeito aos direitos humanos e às liberdades
fundamentais; (b) desenvolver plenamente a personalidade humana e o sentido da
dignidade do ser humano; (c) promover a compreensão, a tolerância, a igualdade
entre gêneros e a amizade entre todas as nações, povos indígenas e minorias;
(d) facilitar a participação efetiva de todas as pessoas em uma sociedade livre
e democrática em que impere o Estado de Direito; (e) fomentar e manter a paz;
(f) promover o desenvolvimento sustentável centrado nas pessoas e na justiça
social.
Embora
a Educação em Direitos Humanos tenha vocação universal, devendo abranger a
totalidade dos cidadãos, a prioridade brasileira são as camadas mais pobres da
população, historicamente as maiores vítimas do analfabetismo, da violência
policial, do abuso de poder, dos serviços públicos de péssima qualidade, da
injusta distribuição de renda, da exclusão social. A pedagogia será mais
eficiente na medida em que atingir os grupos mais vulneráveis, sobretudo as
minorias obrigadas a conviver com a intolerância e o preconceito étnico,
sexual, religioso ou econômico.
2.
SUPRAESTATALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
A Educação em Direitos Humanos é uma prática recente na tradição
latino-americana. É consequência da queda das ditaduras militares no final da
década de 1970 e do processo de redemocratização dos países da América do Sul e
Caribe. Teve como grande inspirador o sociólogo e educador brasileiro Paulo
Freire, criador da Pedagogia do Oprimido.
A sua origem está ligada ao trabalho desenvolvido por organizações
não governamentais interessadas em conscientizar as camadas populares sobre a
importância das liberdades fundamentais proclamadas nos tratados internacionais.
Durante os regimes ditatoriais, as entidades concentravam seus esforços na
denuncia das violações aos direitos humanos – assassinatos, desaparecimentos,
despejos forçados, tortura. Com o processo de democratização, passaram a
investir na educação popular. Na década de 1980, muitas das ações foram
apoiadas e financiadas pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH),
que – nos anos que se seguiram – exerceu grande protagonismo no sentido de incorporar
o conteúdo de direitos humanos à educação formal e não formal.
Em 1999, o IIDH, sediado na Costa Rica, decidiu promover ações
articuladas para a implementação da Educação em Direitos Humanos de forma mais
ampla e democrática. A
iniciativa, coordenada pelo chileno Abraham Magendzo, contou com a participação
de diversos países, inclusive o Brasil. Posteriormente, em novembro de 1999, convocou um Seminário
em Lima para discutir o tema com mais profundidade. Na capital peruana, os
pesquisadores debateram exaustivamente os principais problemas e desafios.
Foram estabelecidas diretrizes para as atividades educativas a serem
executadas, em nível regional, a partir de 2000.
A ideia era estimular o caráter transversal dos direitos humanos
nos currículos escolares, espraiando-se por todas as disciplinas mediante
estratégias educacionais dirigidas à formação política dos alunos. A educação
popular reforçaria valores constitucionais como a liberdade, igualdade,
solidariedade, democracia, justiça social, entre outros. Também introduziria
nas salas de aula temas contemporâneos controvertidos: minorias, gênero,
memória, propriedade privada, tortura, partidos políticos, meio ambiente,
patrimônio cultural etc.
Paralelamente, a ONU manifestou grande interesse em promover ações
educativas de grande amplitude visando ao fortalecimento da cidadania. Em 1993,
a Declaração de Viena, editada pela Conferência Mundial de Direitos Humanos,
estabeleceu que “a educação, a capacitação e a informação pública em direitos
humanos são indispensáveis para estabelecer e promover relações estáveis e
harmoniosas entre as comunidades e para fomentar a formação mútua, a tolerância
e a paz”.
As Nações Unidas fixaram a
Década das Nações Unidas para a Educação em Direitos Humanos no período
compreendido entre 1º de janeiro de 1995
a 31 de dezembro de 2004. Em 10 de dezembro de 2004, A Assembleia Geral das
Nações Unidas criou o Programa Mundial de
Educação em Direitos Humanos, cuja missão foi a de contribuir em escala
mundial para o “desenvolvimento de uma cultura em direitos humanos”. A primeira
etapa daria prioridade à educação primária e secundária; a segunda etapa
concentraria seus esforços na educação universitária.
As atividades previstas no Programa tinham como objetivos centrais:
(a)
promover a interdependência, a indivisibilidade e a
universalidade dos direitos humanos, inclusive dos direitos civis, políticos,
econômicos, sociais e culturais, bem como o direito ao desenvolvimento;
(b)
fomentar o respeito e a valorização das diferenças, bem como a
oposição à discriminação por motivos de raça, sexo, idioma, religião, opinião
política ou de outra índole, bem como origem nacional, étnica ou social,
condição física ou mental, ou por outros motivos;
(c)
encorajar a análise de problemas crônicos e incipientes em
matéria de direitos humanos, em particular a pobreza, os conflitos violentos e
a discriminação, para encontrar soluções compatíveis com as normas relativas
aos direitos humanos;
(d)
atribuir às comunidades e às pessoas os meios necessários para
determinar suas necessidades em matéria de direitos humanos e assegurar sua
satisfação;
(e)
inspirar-se nos princípios de direitos humanos consagrados nos
diferentes contextos culturais e levar em conta os acontecimentos históricos e
sociais de cada país;
(f)
fomentar os conhecimentos sobre instrumentos e mecanismos para a proteção dos direitos
humanos e a capacidade de aplicá-los nos âmbitos mundial, local, nacional e
regional;
(g)
utilizar métodos pedagógicos participativos que incluam
conhecimentos, análises críticas e técnicas para promover os direitos humanos;
(h)
fomentar ambientes de aprendizado e ensino sem temores nem
carências, que estimulem a participação, o gozo dos direitos humanos e o
desenvolvimento pleno da personalidade/individualidade humana;
(i)
ter relevância na vida cotidiana das pessoas, engajando-as no
diálogo sobre maneiras e formas de transformar os direitos humanos, de
expressão abstrata das normas, na realidade das condições sociais, econômicas,
culturais e políticas.
Em 30 de setembro de 2010, o Conselho de Direitos Humanos da ONU editou
um plano de ação para a segunda fase do Programa
Mundial de Educação em Direitos Humanos (2010-2014). Houve significativa
ampliação dos objetivos originais. Além do ensino superior, as ações
destinam-se à formação de funcionários públicos – policiais civis e militares,
agentes penitenciários, professores da rede pública, serventuários de justiça, membros
do Ministério Público e do Poder Judiciário.
Dessa forma, os direitos humanos passam a ser incorporados, ainda
que de forma transversal, ao conteúdo disciplinar de todos os cursos, métodos
de aprendizagem, atividades de ensino, extensão e pesquisa. O mesmo deve
acontecer na formação profissional do magistério e do funcionalismo público, a
fim de vincular as atividades administrativas à observância dos direitos
fundamentais.
A orientação das Nações Unidas consiste na ampla difusão dos
direitos e garantias fundamentais a partir de modelos educacionais destinados à
construção da cidadania democrática, baseada na cultura de valores, no
reconhecimento da condição de sujeito de direitos e na dignidade da pessoa
humana.
3. A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
A Constituição de 1988 foi o marco normativo da Educação em
Direitos Humanos no Brasil. O país, ainda traumatizado com os anos de ditadura
militar, convocara uma Assembleia Constituinte para redesenhar o modelo de
Estado, agora sob o formato de Estado Constitucional de Direito. Pela primeira
vez em nossa história o texto constitucional positivou de forma objetiva os
direitos sociais como prestações positivas a serem asseguradas universalmente a
todos, mediante políticas públicas, programas sociais, ações afirmativas. Entre
os direitos definidos no art. 6º da CF, a educação ostenta o primeiro lugar,
seguido da saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência
social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.
E não parou por aí. Entre os artigos 205 a 214, a Constituição
Federal disciplina largamente o direito à Educação no Brasil. O texto
constitucional estabelece que ela é um dever do Estado e da família, tendo como
linhas mestras o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício
da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
A Educação em Direitos Humanos é um instrumento eficaz para a
promoção da efetividade desse importante direito social, sobretudo no que
concerne à formação para o exercício da cidadania. Tanto é assim que a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) estabelece em seu art. 2º as
mesmas finalidades estatuídas pela Constituição Federal. O
atual Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), lançado em 21 de dezembro
de 2009 (Decreto n, 7037) ,
reafirma as finalidades da Educação e Cultura para os direitos humanos:
formação de nova mentalidade coletiva para o exercício da solidariedade,
respeito às diversidades e tolerância. Nesse sentido, deve promover a formação
do sujeito de direitos, além de combater o preconceito, a discriminação e
violência, requisitos para uma sociedade igualitária, libertária e justa.
Em
2003, o Governo Federal criou o Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos
(Decreto Ministerial n. 98/2003), formado por especialistas, membros da
sociedade civil, representantes de instituições públicas e privadas, além de
organismos internacionais, cujo desafio era apresentar a primeira versão do
Plano Nacional de Educação e Direitos Humanos (PNEDH). O documento foi
exaustivamente debatido em processo de consulta por cerca de cinco mil pessoas,
de todos os Estados do país. A versão final só foi concluída em 2006, após consulta
pública via internet.
A
principal ambição do PNEDH consiste em difundir nacionalmente a cultura dos
direitos humanos, mediante a propagação de valores solidários, cooperativos e
de justiça social. Para isso prevê ações concretas nos seguintes setores:
educação básica, educação superior, educação dos profissionais dos sistemas de
justiça e segurança e profissionais dos meios de comunicação.
O
PNEDH considera a Educação em Direitos Humanos um processo sistemático e
multimensional, que orienta a formação do sujeito de direitos, nos seguintes
níveis, verbis:
a) apreensão
de conhecimentos historicamente construídos sobre direitos humanos e sua
relação com os contextos internacional, nacional e local;
b) afirmação
de valores, atitudes e práticas sociais que expressam a cultura em direitos
humanos em todos os espaços da sociedade;
c) formação
de uma consciência cidadã capaz de fazer-se presente nos âmbitos cognitivo,
social, ético e político;
d) desenvolvimento
de processos metodológicos participativos e de construção coletiva, utilizando
linguagem e materiais didáticos contextualizados, e,
e) fortalecimento
de práticas individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em favor da
promoção, proteção e defesa dos direitos humanos, assim como a reparação das
violações sofridas.
Em síntese, a Educação em Direitos Humanos fundamenta-se na
Constituição Federal, como mecanismo de efetivação do direito fundamental à
educação. Também encontra sustentação na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional e no PNDH-3, que lhe consagrou espaço generoso em seu texto. As ações pedagógicas
gerais estão previstas no Plano Nacional em Educação em Direitos Humanos. A
competência para a sua implementação não é exclusiva da União Federal, mas
envolve também medidas a serem adotadas por todos os entes federativos, organizações
não governamentais, instituições públicas e privadas. Por fim, a iniciativas
possuem ampla abrangência, atingindo os mais diversos seguimentos da sociedade
civil, no âmbito da educação formal, não formal, profissionalizante, formação
de funcionários públicos, profissionais da imprensa e formadores de opinião.
4. OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
A Educação em Direitos humanos é a ferramenta mais poderosa para
fortalecer a cidadania, combater o arbítrio, a intolerância e o preconceito. Daí
a necessidade de estratégias para a formação de educadores especializados, isto
é, “pessoas que projetam, desenvolvem, implementam e avaliam atividades em
direitos humanos e programas de ensino em contextos de educação formal,
informal e não formal” (ONU – Plano de Ação – 2ª Fase)”. Essa função não é
privativa de docentes com formação universitária; também pode ser exercida por
ativistas, ONG’s, sindicatos, partidos políticos – enfim, em todos os setores
da sociedade civil comprometidos com a democracia e com os direitos
fundamentais.
A pauta é vastíssima. Sua abordagem é essencialmente
multidisciplinar, interdisciplinar e multidimensional. Implica o debate sobre o
conhecimento e compreensão dos direitos humanos: universalidade,
indivisibilidade, interdependência e mecanismos nacionais e internacionais de
proteção. Abrange ainda reflexões sobre temas cotidianos como o assedio moral,
pedofilia, homofobia, tráfico de entorpecentes, pobreza, desigualdade social,
reforma agrária, formatação da família, trabalho infantil, doenças sexualmente
transmissíveis e violência doméstica.
Os principais desafios da Educação em Direitos Humanos são: (a) a construção do sujeito de direitos; (b) promoção do processo de empoderamento;
(c) memória: “educar para o nunca mais”
e (d) socialização dos valores e
princípios constitucionais.
A concepção de sujeito de direitos tem suas origens no positivismo
e traduz a capacidade inerente a toda pessoa humana de ser titular da
“vantagem” assegurada pela norma jurídica. Ao nascerem com vida, todos os seres
humanos assumem essa condição, podendo exigir do Estado e de particulares uma infinidade
de pretensões, ações, exceções. Os direitos humanos são universais e beneficiam
aos sujeitos de direitos independentemente de nacionalidade, idade, raça,
convicções religiosas, filosóficas ou políticas.
O problema é que nem todos têm consciência disso. As desigualdades
sociais, a educação deficitária, a exclusão social, os serviços públicos de
baixa qualidade, a repressão policial, tudo impede o desenvolvimento dos
processos de conscientização popular para a formação de cidadãos participativos
e ciosos de suas prerrogativas constitucionais. Daí porque o grande desafio da
Educação em Direitos Humanos é a formação
de sujeitos de direitos. Cabe a ela promover o “despertar” para a nova
realidade, através de ações como conhecer,
promover e defender.
O sujeito de direitos é a pessoa que conhece os principais tratados
internacionais e o catálogo de direitos fundamentais contidos na Constituição
de seu país. Sobretudo os direitos de liberdade (expressão, circulação,
comunicação, religião, devido processo legal...), as garantias processuais
(habeas corpus, mandado de segurança, ação popular, habeas data...), os
direitos sociais, econômicos e culturais (educação, saúde, moradia, segurança,
proteção aos necessitados, bens imateriais...) e os direitos de solidariedade
(meio ambiente, patrimônio cultural, consumidor, crianças, adolescentes e
idosos). Estabelece interlocução com instituições democráticas como o
Ministério Público, Procons, Poder Judiciário, Poder Executivo, OAB, Defensoria
Pública, meios de comunicação etc., conhecendo os procedimentos para encaminhar
representações, abaixo-assinados, denúncias, audiências públicas, mediações.
Também tem o compromisso de promover
os direitos humanos em ampla escala social, colocando seus conhecimentos à
disposição da coletividade a que pertence. Participa ativamente de ações
educativas, debates, movimentos populares, organizações associativas e
sindicais. Sua missão consiste, ainda, em multiplicar os sujeitos de direitos e
fortalecer a cidadania, utilizando a palavra e métodos pedagógicos como
principais armas em defesa da dignidade da pessoa humana. Isto significa que
deve estar habilitado para produzir um discurso jurídico coerente e racional
para exigir a correta aplicação das normas jurídicas asseguradoras de direitos
fundamentais.
Há
também a dimensão do ativismo. Ele está legitimado para defender os direitos humanos contra o arbítrio e a opressão. Para Abraham Magendzo, “o sujeito de direito
tem a capacidade de defender e exigir o cumprimento dos seus direitos e os de
terceiros com argumentos fundamentados e informados, com um discurso assertivo,
articulado e racionalmente convincente. Faz uso do poder da palavra e não da
força, porque o seu interesse é a persuasão e não a submissão”.
Já
a promoção do processo de empoderamento
exige uma metodologia voltada para a transformação interior dos sujeitos de
direito, levando-os a, verdadeiramente, assumir a sua condição de cidadãos
ativos. Exige uma pedagogia libertadora, que deve envolver as vítimas de violações
aos direitos humanos, as vozes silenciadas e as expectativas frustradas.
Sobretudo os grupos que historicamente sempre estiveram em condição de grande
vulnerabilidade – mulheres, negros, homossexuais, empregadas domésticas,
trabalhadores rurais, desempregados etc. O educador popular tem a missão de
despertar as energias represadas dos oprimidos para que assumam o papel de
protagonistas de suas vidas e participem ativamente das instâncias de
deliberação coletiva. Exige o permanente combate à passividade, ao conformismo,
à baixa autoestima, à indiferença. Aspira a completa e definitiva emancipação
do sujeito de direito. Por essa razão afirma Vera Lucia Candau que “o empoderamento
começa por liberar a possibilidade, o poder, a potência que cada pessoa tem
para que seja sujeito de sua própria vida”.
Os cidadãos são verdadeiramente convocados para assumir a tarefa de tornar
exigíveis e efetivos os direitos humanos, mediante o uso da argumentação e do
diálogo. A
partir daí nascerá o verdadeiro sujeito de direitos.
O
processo educacional também deve estar comprometido com a memória: o educar para o “nunca mais”. Sob essa perspectiva
teórica, os educadores devem insistir na memória de fatos históricos que
implicaram violações aos direitos humanos e na negação da democracia, a exemplo
dos regimes de exceção, da repressão política, das mortes e desaparecimento de
opositores. A estratégia consiste em transmitir às novas gerações a “ética da
atenção”, que permite repudiar os atos cotidianos que reproduzam as crueldades
do passado. A prática do “nunca mais” estabelece o compromisso com a luta
contra a impunidade, a censura, a tortura, o medo e a negação das liberdades
fundamentais.
O
constitucionalismo brasileiro tem passado por profundas transformações desde a
promulgação da Constituição de 1988. Entre os avanços mais expressivos está o
reconhecimento da força normativa dos valores e princípios positivados em seu
texto. A dignidade da pessoa humana foi elevada à condição de metavalor, que se
exterioriza axiologicamente através da igualdade, liberdade e solidariedade. O
preâmbulo da Carta também enumera a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento e
a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos. Por outro lado, os direitos fundamentais integram uma ordem de
valores e princípios detentores de aplicabilidade imediata e força vinculante
em relação aos poderes ao Executivo, Legislativo e Judiciário. Além disso, a
judicialização da política deslocou para o Judiciário o debate sobre a
implementação das políticas públicas e da efetividade dos direitos sociais. Nesse
contexto, a socialização
dos valores e princípios constitucionais favorecerá
nacionalmente a difusão da cultura em direitos humanos, formando sujeitos de
direitos críticos, conscientes de suas prerrogativas constitucionais e imbuídos
na luta pela efetividade da Constituição.
PARA
CONCLUIR: APREENSÃO E INTERPRETAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Em
1975, o jurista alemão Peter Härbele desenvolveu, com muito sucesso, o
paradigma da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. A ideia central estava
em que a interpretação constitucional não era um conhecimento público do
Direito, uma exclusividade de seus operadores, monopólio dos tribunais. Ao
contrário, todos os cidadãos deveriam ser convocados para a tarefa. Härbele
queria estender a ação interpretativa dos direitos humanos para todos os
setores da sociedade civil, para os cidadãos, para os sindicatos, para os
estudantes, para as organizações não governamentais, para os grupos
vulneráveis. Suas ideias tiveram grande repercussão no Brasil, influenciando a instituição
do amicus curiae
– etimologicamente, amigo da Corte, legitimado para a intervenção assistencial
em processos de controle de constitucionalidade, podendo manifestar-se sobre as
questões de direito e contribuir, em nome de setores da sociedade civil, para a
solução da controvérsia, sem assumir a condição de parte da ação. Também sob
sua influência, foram instituídas audiências públicas convocadas pelo STF para
ouvir a opinião pública a respeito de temas controvertidos, como a bioética e a
aplicação de determinados direitos sociais.
Para
Härbele, a Constituição reflete um conjunto de valores fundamentais que têm na
dignidade humana a sua principal justificação Sustenta que o sucesso do
paradigma da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição passa,
necessariamente, pela Educação em Direitos Humanos. Ele ensina que
O paradigma da
sociedade aberta dos intérpretes constitucionais deveria ser objeto da
pedagogia. Em outras palavras, os direitos humanos já deveriam ser aprendidos
na escola como objetivos da educação, como foi proposto antes pelas
Constituições do Peru e da Guatemala. Na Argentina, a juventude deveria ser
incentivada desde cedo a participar dos processos de criação e interpretação do
Direito por meio de petições e discussões. Em 1974, numa conferência em Berlim,
me animei a formular a seguinte hipótese: das escolas dependem a teoria
constitucional que possamos desenvolver no futuro.
A
Carta de 1988 está impregnada de postulados neoconstitucionalistas que se
irradiam para todos os ramos do Direito. Os direitos fundamentais estão na
centralidade do ordenamento jurídico vinculando e dirigindo as instituições
estatais e a conduta de particulares. O discurso jurídico é construído a partir
de uma retórica baseada em princípios regras e valores constitucionais, concebida
com o intuito de desenvolver hermenêutica concretizadora dos direitos humanos,
sobretudo em casos que versam sobre o déficit de direitos sociais. Cada vez
mais o Judiciário brasileiro tem aplicado os tratados internacionais de
direitos humanos no julgamento de casos concretos. Este cenário exige maior
presença de cidadãos ativos, dispostos a protagonizar as mudanças por que passa
o Estado Constitucional de Direito no Brasil.
Os
cursos jurídicos têm grande responsabilidade na tarefa pedagógica. Acreditamos
que as atividades de ensino, pesquisa e extensão universitária, no âmbito da
graduação e da pós-graduação, devem-se voltar para o despertar do sujeito de
direitos, para a memória e para a socialização dos valores e princípios
constitucionais. Os direitos humanos fundamentais não pode ser apenas uma
disciplina acadêmica, vinculada ao Direito Constitucional. Seu vasto conteúdo
programático deve se capilarizar para as demais disciplinas, sempre na
perspectiva crítica e multidimensional.
Sob
que ótica deve ser ofertada a Educação em Direitos Humanos no Brasil?
Defendemos o viés garantista, nos termos propostos por Luigi Ferrajoli.
Trata-se de doutrina baseada em postulados como o reconhecimento, respeito e
defesa dos direitos fundamentais, no construção de garantias processuais
capazes de proteger o indivíduo contra o arbítrio estatal, na imposição de
limites à atuação do Estado a fim de permitir o livre desenvolvimento da personalidade
humana, no que tange à integridade física, psíquica e moral. Reproduz o
discurso contra todas as formas de despotismo, repudiando práticas tirânicas,
totalitárias, ditatoriais, barreiras segregativas e os tratamentos desiguais.
Esse
modelo só funciona quando o Estado Constitucional de Direito vive a normalidade
democrática, a partir de uma Constituição legítima, com a plena separação e
independência dos poderes, prevalência da legalidade, estabilidade política, combate
à corrupção e eficiente jurisdição constitucional. É nessa ambiência, e apenas
nela, que os direitos fundamentais podem sem vivenciados por todos, sem
qualquer distinção arbitrária.
O
Estado sancionador exerce o monopólio do ius
puniendi. Aplica sanções penais e administrativas. A tutela individual
consiste no pleno respeito ao devido processo legal, com todas as garantias que
lhe são inerentes: ampla defesa, contraditório, assistência de um advogado,
duplo grau de jurisdição, presunção de inocência, duração razoável do processo.
O sujeito de direitos deve internalizar esses conceitos, conhecendo as
garantias constitucionais necessárias para se proteger do abuso de poder, da
tortura e dos tratamentos desumanos e degradantes.
A
repressão à criminalidade exige um equilíbrio entre os meios utilizados as
finalidades almejadas pelo Estado. O princípio da proporcionalidade e o devido
processo legal são escudos protetores contra as investidas despóticas do
aparato policial.
A
Educação em Direitos Humanos deve, por fim, conscientizar os cidadãos de sua
condição de “credores” das prestações estatais positivas contidas na Constituição
Federal. Ao lado das liberdades públicas, os direitos sociais exercem
importante papel no empoderamento das práticas que envolvem a igualdade de
pontos de partida e o bem-estar da coletividade. Isso os fará exigir serviços
públicos de boa qualidade, políticas sociais destinadas a grupos mais
vulneráveis, a diminuição das desigualdades sociais e regionais, a proteção do
patrimônio público. Também os capacitará a exigir a satisfação do mínimo
existencial, a progressividade dos direitos econômicos, sociais e culturais. O resultado será um verdadeiro ativismo popular
em defesa da solidariedade, o que implica o fortalecimento do sentimento de
pertença que o impulsionará à tutela dos interesses difusos e coletivos da
sociedade.
No
famoso discurso proferido em homenagem os primeiros heróis mortos na Guerra do
Peloponeso em 430 a.C, considerado o mais importante da Antiguidade, Péricles
afirmou que “consideramos o cidadão que se mostra estranho ou indiferente à
política, não como um amigo do repouso, mas como um ente inútil à sociedade e à
República”.
O líder ateniense era partidário da cidadania ativa, participativa,
questionadora. Mas abominava a neutralidade dos concidadãos que mantinham uma
postura de neutralidade, a fim de preservar os seus bens materiais e a
tranquilidade no lar. Esses eram condenados ao ostracismo, transformavam-se em
párias, desprovidos do direito de cidade.
A
construção da cultura em direitos humanos no Brasil está condicionada à
existência de um modelo educacional voltado para a formação de cidadãos ativos,
aptos a defender os interesses individuais e coletivos, posicionar-se
politicamente diante dos desafios e manusearem os instrumentos de democracia
participativa. Cidadãos que se reconheçam como sujeitos de direito e se disponham
a lutar por eles, elevando a sua voz em defesa da liberdade, igualdade,
solidariedade e democracia. Enfim, cidadãos que conheçam, leiam e interpretem a
Constituição de seu país, avivando a memória para o “nunca mais” e lutando pela
efetividade dos direitos fundamentais. Só assim o projeto de Educação em
Direitos Humanos surtirá os efeitos esperados pelo povo brasileiro.
Cf. art. 23, §
1º, da Resolução n. 390/2004 do Conselho da Justiça Federal e Lei n.
9.868/1999, que regula o procedimento da ação direta de inconstitucionalidade e
da ação declaratória de constitucionalidade ( art. 7º, § 2º).